Archives for category: A construção da liberdade

O homem constrói o seu mundo de modo a colocar-se ao abrigo da mais bela de todas as manifestações: a passagem do tempo. E é justamente no interior desse mundo, domesticador do tempo e da violência que este contém, que a percepção da sua irresistível passagem mais fascina, pelo contraste que causa no mundo plano em redor (mundo regido por calendários, rotinas, ciclos).

Villa abandonada no centro do Porto, 2012, Andrea Morgenstern

Villa abandonada no centro do Porto, 2012, Andrea Morgenstern

Villa abandonada... Andrea Morgenstern

Villa abandonada… Andrea Morgenstern

A beleza da passagem do tempo é a beleza do não-cíclico, daquilo que não se repete, do que ainda não aconteceu. Só a passagem do tempo é fonte de novidades verdadeiras. Uma sociedade obcecada com a domesticação do tempo é uma sociedade que limita a aparição do novo.

Villa abandonada... Andrea Morgenstern

Villa abandonada… Andrea Morgenstern

Mas mesmo em sociedades obcecadas com a criação de sistemas e rotinas, como a nossa (cuja geografia não concebe senão dois pólos cada qual com as suas rotinas: o pólo do trabalho e o do consumo), existem sempre heterotopias como esta villa abandonada no centro do Porto, abençoada pela passagem do tempo.

Descobrir e comunicar essas heterotopias passará a ser também um dos propósitos deste blog.

Vazio urbano, Porto, 2012, Pedro Duarte

Vazio urbano, Porto, 2012, Pedro Duarte

Há tempos que ando a reflectir sobre o (in)explicável fascínio que os descampados me provocam, especialmente quando irrompem no meio do ruído urbano. Ervas espontâneas, caminhos espontâneos, aves espontâneas, cães vadios espontâneos, lixos espontâneos, micro-ruínas espontâneas (nascidas de coisas abandonadas, espontaneamente); e, claro, as derivas espontâneas de quem procura os lugares onde os urbanistas e as suas técnicas (de readaptar sempre a urbe aos mais recentes imperativos do controlo) ficam sempre de fora, onde apenas a liberdade e os seus amantes são convidados a entrar.

O vazio é o único lugar onde verdadeiramente tudo pode ocorrer.

É por isso o mais perigoso dos lugares. E isso, por si só, bastaria para explicar que nenhum político jamais inaugurou um vazio. (O Rui Rio, por exemplo, deve odiar o pequeno exemplar que a foto ilustra.)

Vazio urbano, Porto, 2012, Pedro Duarte

Vazio urbano, Porto, 2012, Pedro Duarte

Na música ou no cinema, existe uma arte (da qual Debord foi pioneiro) de criar com os vazios, os silêncios, os ‘descampados’. Na sociedade do consumo ininterrupto de espectáculos, criar vazios onde o homem não se possa encontrar senão consigo próprio continua a ser a mais subversiva das intervenções – a única de facto hostil ao império da mercadoria.

Por outro lado, os vazios fazem com que tudo o resto se torne mais luminoso, mais significante, mais profundo. Qualquer vazio tem o dom de gerar contrastes, ou seja, de dar ênfase a tudo o resto.

Vazio urbano, Porto, 2012, Pedro Duarte

Vazio urbano, Porto, 2012, Pedro Duarte

Todas as épocas, excluindo a nossa, souberam lidar com o vazio (e, por conseguinte, com a morte, o vazio mais extremo), o qual tem múltiplas formas de se manifestar. O jejum, por exemplo, foi praticado nas mais diversas culturas enquanto ritual de limpeza e purificação. Mas talvez a maior virtude do jejum enquanto ritual seja a de, periodicamente, redespertar o desejo, o interesse, o gosto pela comida. Uma época que não se interessa pela qualidade do que co(nso)me não poderá logicamente praticar o jejum.

E quase tudo fica ainda por dizer sobre o vazio…