Archives for category: Construção da memória

É preciso multiplicar os monumentos que recordem a luta anti-fascista.

“Dando voz ao desejo, tantas vezes expresso dos amigos e admiradores de Hermínio da Palma Inácio, um grupo de antigos companheiros resolveu avançar com o projecto de edificação dum monumento comemorativo da sua fuga, no Largo Soares dos Reis, no Porto.

O projecto, cuja fotomontagem enviamos em anexo, já foi aprovado pela Câmara Municipal do Porto e é da autoria do escultor Joaquim Álvares de Sousa.(…)

A inauguração do referido memorial está prevista para 8 de Maio de 2013.”

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[Via http://luardejaneiro.blogs.sapo.pt/123614.html ]
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Uma boa ocasião sem dúvida para fazermos um tour pelas grandiosas paisagens ideológicas de Pyongyang.

Inserido numa pequena série de 4 filmes sobre “Arquivos, memórias e explorações documentais”, “A embaixada” foi o único filme da sua série que me convenceu – os restantes abusaram de um pseudo-experimentalismo que nem há meio século passaria por vanguardista. Nele, um único plano mostra tudo: uma mão, preta, actual, que percorre as páginas de um antigo álbum de fotos, tiradas por brancos, de distintas paisagens da Guiné Bissau sob domínio português. A mão percorre lentamente todo o álbum, mas apenas se detém numa percentagem relativamente pequena de imagens. A mão preta escolhe, selecciona apenas algumas das imagens fabricadas pelo (e para o) olho branco. A mão que mostra o passado à câmara de Filipa César mostra apenas uma fracção desse passado.

Imagem do filme "A embaixada", 2011, de Filipa César

Trata-se de uma bela metáfora de como cada memória constrói o seu passado, destacando as imagens e as paisagens que melhor o definem e fundamentam.

O território à nossa volta (as ‘paisagens contemporâneas’) está repleto de sinais da história e da pré-história, que nos anunciam outros mundos, épocas e sociedades. Entender esse território, por onde nos movemos regularmente, depende pois do nosso conhecimento do passado mais ou menos remoto.

É esse conhecimento (o qual se vai lentamente construindo, questionando e reformulando, num processo muito lento, nem sempre cumulativo) que, ao dar-nos uma imagem e uma escala da história humana, nos permite ganhar uma perspectiva a partir da qual podemos olhar, pensar, valorizar e criticar o próprio presente. Daí que sem história dificilmente poderá haver uma leitura crítica do presente. Sem história, dificilmente poderão sequer existir ângulos para perspectivar o presente. Ao permitir que a nossa memória represente de formas fidedignas (e não delirantes, falsas, mentirosas) o passado, ela é pois fundamental.

Capa do Vol. 2 do manual do 5º ano de História e Geografia de Portugal da Texto Editores, 2011

O manual de História (que também compreende as matérias de Geografia) do 5º ano dos meus filhos, escrito por Ana Oliveira, Francisco Cantanhede e Marília Gago, e revisto, entre outros, pelo Dr. Jorge de Alarcão, professor catedrático da Universidade de Coimbra e autoridade inquestionável da arqueologia portuguesa, contém uma quantidade espantosa de informações delirantes relativas ao capítulo sobre pré-história (a verdade é que ainda não li o manual mais para a frente, por isso não sei se o ritmo de disparates se mantém ao longo de todo o livro). Entre estas, contam-se as seguintes, capazes de deixar qualquer pré-historiador com os cabelos em pé:

Insinua-se que a agricultura e a pastorícia foram inventadas como meras reacções adaptativas a alterações climáticas.

Faltam dados que confirmem esta velhíssima tese positivista (e recorde-se que o dr. Alarcão tem sido o grande defensor das causas positivistas na arqueologia portuguesa) , que valida o velhíssimo pressuposto esquemático, redutor e simplista de que a cultura não passa de um sistema de meios “que servem para adaptar indivíduos e grupos aos seus ambientes” (Lewis Binford, 1968). E cada vez surgem mais dados que revelam como essa tese é exageradamente redutora e irrealista.

Diz-se que as comunidades agro-pastoris passaram a adorar a chuva.

Puro delírio! Porquê a chuva e não o planeta Vénus ou o cometa Halley?

Diz-se que os primeiros aldeamentos camponeses “eram cercados para as comunidades se defenderem melhor dos (…) grupos inimigos”.

Nada mais falso: os aldeamentos fortificados não surgiram no início do período em que o Homem iniciou de forma consistente a domesticação de plantas e animais (o chamado Neolítico), mas justamente no final desse período, com a generalização de um clima de guerra pelo sudoeste da Península Ibérica.

Representa-se um indivíduo de uma comunidade caçadora-recolectora a pintar, na parede de uma caverna, duas figuras humanas.

Gravíssimo: a arte parietal do Paleolítico (período em que as estratégias económicas assentavam sobre a caça/pesca e a recolecção) caracteriza-se pela quase absoluta ausência da representação da figura humana, ao contrário da arte das comunidades neolíticas, precisamente centrada em torno da representação desta figura.

Afirma-se, sobre a arte rupestre do Paleolítico, que as pinturas, “geralmente, representam cenas de caça”.

É a mentira mais inaceitável de todas: em nenhuma parte do mundo a não ser no mundo da banda desenhada e da fantasia, do qual este manual parece querer fazer parte, se afirmou tal coisa. É o maior delírio de todo o capítulo. Inqualificável! (Cenas de caça?!)

Será que o Dr. Jorge de Alarcão, que terá sido pago para fazer a revisão científica da obra, não se debruçou uns dez minutinhos sobre as aberrações narradas no capítulo sobre pré-história? Atendendo à dimensão dos disparates transmitidos nesse capítulo, não é de todo improvável.

Ou será o notável catedrático de Coimbra uma autoridade internacionalmente reconhecida em arqueologia clássica (do imperialismo romano) e uma nulidade total e completa em arqueologia pré-histórica? Se for este o caso, deveria tê-lo comunicado, humildemente, aos autores do manual, para que estes entregassem a outros a revisão científica da matéria em questão.

Na verdade, pouco me importa a razão da falta de responsabilidade por parte daquela eminência académica. Importa-me apenas que o passado mais remoto transmitido aos meus filhos e a todos aqueles que também foram obrigados pela escola a adquirir o manual em apreço (que, por sinal, não foi nada barato) seja uma ficção completa, sem um horizonte de verdade com o qual deveria estar fortemente comprometido.

Já todos sabíamos que o compromisso com a verdade há muito que desaparecera de inúmeras esferas da vida social (mediática – onde aliás nunca esteve –, mercantil, jornalística, política, etc.). Ficamos a saber agora que nem na escola esse compromisso é levado a sério.

Quanto aos meus colegas pré-historiadores, os debates em que se têm envolvido a fundo, e que têm contribuído para pintar com novas formas e cores o quadro do nosso passado mais remoto (Paleolítico e Neolítico), não encontram tradução sequer num manual escolar de História. Para que servirão, então?

Jacques le Goff escreveu um dia que a Revolução Francesa foi, em certa medida, uma revolução da memória: de facto com a Revolução apareceram de imediato os Arquivos nacionais (tornando públicos os documentos da memória nacional) e começou também a era dos museus públicos e nacionais.

Que a nossa revolução em gestação seja também uma revolução da memória; da memória de todo o nosso passado, que nos permita compreender criticamente o presente.

A estação de metro Baixa-Chiado foi rebaptizada PT Bluestation. Segundo o presidente do Metropolitano esta mudança “é um marco na vida do metro, um marco de ruptura, de inovação, de criatividade”. Com tantas almas em busca de ruptura, inovação e criatividade (e com o neo-liberalismo selvagem a devorar agora também os até aqui tranquilos topónimos), ainda ninguém se lembrou de mudar o nome de Lisboa para ‘Coca Cola Paradise’ ou de Coimbra para ‘Pfizer & L’Oréal Consortium’?

O secretário de Estado dos Transportes, outro visionário neo-liberal, também se declarou “muito contente com este projecto” pois “corresponde à vontade do Governo de que as empresas públicas de transportes encontrem formas inovadoras e criativas de gerar receitas”. (Porque não sacar também um órgão, para colocá-lo à venda na internet, a cada passageiro apanhado sem bilhete?)

Longe vai o tempo em que se convidavam artistas, com uma visão mais ou menos crítica do presente, para embelezarem as estações.

Longe vai o tempo em que a crítica era admitida no espaço público.

(Quem já leu os lúcidos Comentários à Sociedade do Espectáculo de Guy Debord sabe que o momento histórico em que vivemos tem um nome: espectacular integrado. A decisão recente do metropolitano de Lisboa vem apenas confirmá-lo.)

‘Lixo’ é um conceito recente.

Os meus vizinhos nonagenários contam-me que, ainda há poucas décadas, não acumulavam grandes restos das coisas consumidas. O que sobrava, geralmente matéria orgânica, voltava para a terra, de onde aliás tinha vindo.

Também no porto de Manaus, capital do estado brasileiro da Amazónia, onde vivem muitas pessoas dentro de barquinhos rudimentares (onde chegam a ter galinhas e a fazer hortas), o que sobra vai parar ao Amazonas. Os restos jamais se acumulam, nunca chegando pois a formar uma ‘lixeira’. Há dez anos, os meus olhos pasmados viram restos de comida, de cerâmica e de roupa a voar com uma grande naturalidade para o rio.

‘Lixo’ não é pois um conceito operativo para descrevermos todas as épocas nem todas as culturas. Mas é um conceito central para descrevermos o mundo em que vivemos e o modelo de sociedade e de economia dominantes.

Produzir lixo é hoje, nos meios mais prósperos do Ocidente, um sinal distintivo que assinala o prestígio, a dignidade, o privilégio de um indivíduo, o seu grau de sucesso na hierarquia social. Quantas toneladas de lixo produzirá anualmente o Cristiano Ronaldo? Em quantos quilos de plástico virá embalada a comida que ele semanalmente consome? E a roupa? Quantos quilómetros quadrados de tecido passado de moda deitará esse escravo do espectáculo fora num único ano? Lixo é aqui sinónimo de luxo.

Não menos interessante do que o lixo luxuoso de CR7 para conhecermos o tempo em que vivemos, seus hábitos e suas práticas, é o lixo que uma equipa da Universidade de Washington tem andado a estudar: aquele encontrado na fronteira mexicana com os EUA, gerado por milhões de ‘latinos’ em busca do sonho americano.

Bota encontrada na fronteira mexicana com os EUA, 2011, Jeff Corwin

Chamado Undocumented Migration Project, este projecto de investigação etnográfica converte mochilas, calçado, garrafas de água e muitos outros itens de cultura material abandonados na paisagem em documentos para revelar algo da biografia e da identidade dos corpos anónimos que cruzam a fronteira. O lixo, acumulado no território percorrido por milhões de ‘migrantes’, pode ser alvo de uma série de questionários que o convertem num precioso recurso para recuperarmos informações sobre vidas submetidas a torturas várias que todos os média, reféns do espectáculo, propositadamente ignoram.

A história do nosso tempo poderia hoje definir-se como “tudo aquilo que ocorre fora dos média”; e o Undocumented Migration Project é precisamente um projecto sobre história do nosso tempo.

Memorial aos soldados ingleses que lutaram nas colónias, Londres, 2011, José Reis

Memorial aos soldados ingleses que lutaram nas colónias, Londres, 2011, José Reis

O Zé Reis, com quem levo mais de uma década de discussões sobre “o materialismo”, visitou finalmente (aos anos que sonhava com o momento) a campa de um dos gigantes do pensamento crítico e da filosofia ocidental.

Túmulo de Karl Marx, Cemitério de Highgate, Londres, 2011, José Reis

Lápide no túmulo de Karl Marx, Cemitério de Highgate, Londres, 2011, José Reis

Busto de Karl Marx, Cemitério de Highgate, Londres, 2011, José Reis

Da série 'Paisagens da Batalha do Ebro', rio Ebro, 2008, Joan Villaplana

Poderia resumir numa curta frase o impacto do trabalho de Joan Villaplana na minha vida: abalou profundamente o meu modo de olhar em redor, de ler e descobrir o mundo à minha volta, tal como o homem o transforma e transformou. Esta série de posts resultará, no entanto, de mais do que da merecida homenagem à singularidade da sua obra inesgotável, que vou descobrindo de ano para ano, com um espanto incontido que nunca fui capaz de esconder-lhe (ao Joan). Resultará também da minha forma subjectiva de ver uma obra que por sua vez influencia decisivamente a minha própria forma de ver. Como bem demonstrou o filósofo Nelson Goodman na sua obra-prima de 1978 (Ways of worldmaking), aquilo que vemos mesmo à nossa frente depende de uma série complexa de circunstâncias e factores – e é por isso que nem todos vemos as mesmas coisas. No meu caso, tenho de confessar-te, Joan, que depende, em grande medida, do teu trabalho, do teu olho, da tua sensibilidade, da tua inteligência. Se tenho hoje vontade de olhar para o mundo lá fora e de buscar compreendê-lo, é graças ao estímulo das tuas fotografias.

Da série 'Paisagens da Batalha do Ebro', rio Ebro, 2008, Joan Villaplana

O olhar que J. Villaplana estende àquilo que (n)o(s) rodeia denota sempre uma mesma frontalidade, mas também subtileza – e a mim interessam-me as duas por igual. A sua formação académica em Humanidades deu-lhe um redobrado interesse pelo real enquanto matéria (polémica porque) usada e abusada pelas pessoas durante a construção simbólica dos seus mundos, humanizados graças àquilo que os antropólogos muito abstractamente decidiram chamar cultura. As fotografias de Joan falam-nos por isso muito pouco do Mundo – e quão desinteressante ele, afinal, é. Falam-nos, isso sim, da diversidade de mundos que as pessoas vão construindo e destruindo dentro do Mundo que fanáticos cristãos e fanáticos marxistas (que nunca chegaram a entender Marx) julgam ser unívoco.

Da série 'Paisagens da Batalha do Ebro', rio Ebro, 2008, Joan Villaplana

Começo esta nova série com o trabalho de Joan sobre as paisagens da decisiva Batalha do Ebro, a mais importante e sangrenta de toda a Guerra Civil Espanhola (1936-9). As suas fotos, de uma margem para a outra do rio, revelam muito mais do que simplesmente aquilo que faria parte da experiência visual dos intervenientes da batalha mencionada. 

Da série 'Paisagens da Batalha do Ebro', rio Ebro, 2008, Joan Villaplana

Estas e outras fotos deste trabalho podem ser consultadas na página Web, da autoria de Roger Roca,  www.darreresbatalles.com/es/joan_villaplana.php .

Plaça de Sant Felip Neri, Barcelona, 2009, Pedro Duarte

A guerra civil espanhola ficou gravada, ou cravada através das suas balas, nesta fachada que nos permite reviver os fusilamentos das tropas franquistas.

A nossa memória constrói-se através das experiências que temos no mundo material que nos rodeia; mais precisamente nos lugares, arquitecturas e monumentos que formam as suas paisagens. As memórias, sejam elas individuais ou colectivas, sedimentam-se pois nas paisagens de que fazemos parte. Portanto, qualquer intervenção que hoje se faça na paisagem irá necessariamente interferir com a forma como a nossa memória é construída.

Essa interferência é naturalmente mais profunda quando a intervenção seja realizada em lugares de memória. Nestes lugares, autênticas falhas no espaço que abrem ao sujeito contemporâneo a possibilidade de evocar tempos passados, cada intervenção na paisagem é parcialmente responsável pela forma como decorre a relação que indivíduos do presente constroem com tempos passados. Por outro lado, cada uma destas intervenções contemporâneas corre o risco de transformar, em função de conceitos e ideologias do presente, a substância material que nos comunica o passado: o que ela se arrisca a deformar é o próprio passado.