Archives for category: Arquitectura paisagista

BANCO madeira+betão almada

BANCO madeira+betão almada1

[Fotos de A. Morgenstern, em Almada, 2014]

O episódio, infelizmente, é verídico (e demonstra que, essencialmente no sul de Portugal, a paisagem, enquanto valor cultural, nada representa para as pessoas):

Terminada a obra de reconstrução de todo o espaço exterior de uma casa particular no Alentejo, exclama a senhora que limpa e cuida da casa para uma vizinha: “E agora aonde é que eu despejo o balde?”

Antes da obra, a senhora podia despejar o seu balde em praticamente qualquer sítio: em redor da casa, todo o espaço podia receber as águas turvas e contaminadas do balde, desempenhando assim a função de esgoto. Depois da obra estar concluída (pavimentos e canteiros terminados), o balde passou a ter de ser despejado no terreno vizinho, o qual, passível de desempenhar em qualquer momento a função de esgoto, despertava inveja na senhora (“Hmmm, era de um terreno assim que eu precisava aqui à beirinha da porta”).

A noção de paisagem que os povos do Neolítico já possuíam, como demonstra a complexa relação que os seus monumentos megalíticos tinham com a paisagem envolvente (exemplificada pelo famoso recinto dos Almendres, Évora), perdeu-se nalgum momento da história – pelo menos para estas gentes do Sul, tão preocupadas em ter, junto às zonas habitadas, locais onde despejar o balde. Entre o esgoto e a paisagem, o alentejano contemporâneo prefere o esgoto (é pelo menos assim com TODOS os meus vizinhos).

Para quem constrói ‘paisagem’, Portugal é um excelente país para emigrar para outro lado qualquer.

Ao contrário de Lisboa, em Berlim existe mobiliário urbano interessante sem acabar. Um motivo apenas, entre tantos outros, que fazem da capital alemã a melhor cidade europeia para se viver (perdoem-me os leitores londrinos deste blog) – apesar do boom recentemente verificado na especulação imobiliária em bairros que há menos de uma década estavam acessíveis a todas as classes sociais, incluindo aquela a que eu pertenço.

Há um banco que todos em Prenzlauer Berg conhecem e que é muita coisa ao mesmo tempo: cómodo, prático, moderno, clássico, artificial, natural, orgânico, robusto, airoso…

Praticamente sozinho, este banco define um lugar. Um lugar aos esses…

Banco em ziguezague, 2008, Andrea Morgenstern

Banco em ziguezague, Berlim, 2008, Andrea Morgenstern

O banco arrasta-se como uma serpente, o que não deixa de ser curioso: trata-se de um local para o repouso, ou seja, para acolher a inibição de movimento, mas que tem um movimento, um balanço, um ritmo muito próprio.

Banco..., Andrea Morgenstern

Banco…, Andrea Morgenstern

E eis que, ao mais pequeno sinal de vida dado pelo Sol, o banco se torna um inevitável ponto de atracção para as vidas de centenas de berlinenses.

Banco..., Andrea Morgenstern

Banco…, Andrea Morgenstern

Banco..., Andrea Morgenstern

Banco…, Andrea Morgenstern

Banco..., Andrea Morgenstern

Banco…, Andrea Morgenstern

Banco..., Andrea Morgenstern

Banco…, Andrea Morgenstern

Banco..., Andrea Morgenstern

Banco…, Andrea Morgenstern

… para variar, os cenários criados para os seus edifícios-jóias neutralizam a presença perturbadora da paisagem. As paisagens reduzem-se aqui à mera função de servirem de cenários neutros, sem expressão própria, para obras que se devem impor no território como novos marcos turístico-identitários, ou, como agora se diz, como novas marcas. Falta à ‘arquitectura do nosso tempo’ uma certa predisposição para abrir-se à violência – do tempo, das pessoas, das paisagens.

Serpentine Gallery Pavilion de Toyo Ito, Londres, 2006, turezure (flickr)

Serpentine Gallery Pavilion de Toyo Ito, Londres, 2006, turezure (flickr)

Teahouse de Toyo Ito, 2006, jontofski (flickr)

Teahouse de Toyo Ito, 2006, jontofski (flickr)

Nalguns meios da ecologia, corre a discussão sobre os efeitos da introdução na nossa paisagem de plantas exóticas em detrimento das ‘autóctones’. Existe, como é sabido, o risco daquelas plantas se tornarem terríveis pragas, incontroláveis, sacrificando os frágeis equilíbrios do ecossistema. Mas esses ecologistas, que comem tomate, batata, laranja, azeite e bebem vinho (tudo produtos ‘exóticos’, que a civilização – e não o ecossistema lusitano – fez chegar até nós), não se rebelam apenas contra as plantas que se tornam verdadeiras pestes, desequilibrando gravemente o biossistema: qualquer planta vinda de qualquer lugar distante, mesmo que depois de introduzida conviva pacificamente com o resto, é para eles uma peste.

Mas de onde vem esta xenofobia vegetal que, na maioria dos casos, não tem qualquer fundamento ecológico?

E qual poderia ser, por outro lado, o seu fundamento cultural, sabendo que não existem culturas que não sejam mestiças?

E, já agora, onde poderíamos encontrar um fundamento paisagístico, sabendo que uma paisagem ‘autóctone’ – como as que encontraríamos na Gronelândia, na Antártida ou em Marte – é, de acordo com as mais consensuais definições de ‘paisagem’, uma ‘não-paisagem’, já que marginal à intervenção humana que é, por definição, criadora de geografias transgénicas, impuras, miscigenadas?

(E porque é que a roupa que os defensores das paisagens autóctones vestem, a música que ouvem, os alimentos que ingerem ou a arquitectura que os abriga não é alvo de um exame igualmente xenófobo?!)

Tipuana tipu, espécie exótica, proveniente do Paraguai e recentemente introduzida na paisagem portuguesa, Lisboa, 2012, Andrea Morgenstern]

Tipuana tipu, espécie ‘exótica’ proveniente do Paraguai, Lisboa, 2012, Andrea Morgenstern

Não é preciso muito dinheiro para investir na transformação da experiência que os transeuntes possuem da cidade onde vivem.

É justamente quando o capital, com a sua lógica da multiplicação infinita, deixa de ser o actor central da urbe, que esta mais se abre à imaginação e à fantasia. Ora, não é por acaso que o espaço urbano de Berlim, cidade das mais endividadas da Alemanha e possivelmente de toda a Europa, tem sido alvo de intervenções que, embora muito pontuais, transformam profundamente a vida na urbe, dando-lhe perspectivas e possibilidades novas.

Estrado de madeira inserido em canteiro, Berlim, 2012, Andrea Morgenstern

Estrado de madeira inserido em canteiro, Berlim, 2012, Andrea Morgenstern

Algum do melhor mobiliário urbano não predefine à partida os seus possíveis usos. É o caso de uns estrados de madeira que estão a aparecer em vários pontos da capital alemã, nomeadamente em Prenzlauer Berg, que é de onde provêm os exemplares que as fotos procuram ilustrar.

Caracterizam estes estrados precisamente uma enorme capacidade de se moldarem e apresentarem utilidade variada, uma notável flexibilidade que advém do facto de poderem ser aproveitados de diferentes maneiras por diferentes pessoas.

Estrado em recanto de jardim, Berlim, 2012, Andrea Morgenstern

Estrado em recanto de jardim, Berlim, 2012, Andrea Morgenstern

Estrado em acção, Berlim, 2012, Andrea Morgenstern

Estrado em acção, Berlim, 2012, Andrea Morgenstern

Vários clichés animam o mundo habitado pela maioria dos arquitectos (quando digo ‘maioria’ não creio estar a ser injusto). Um deles é que o espaço exterior que envolve as magníficas jóias por si criadas deve ser objecto de uma coisa chamada “arranjos exteriores“.

O raciocínio que fazem é simples e parte de uma associação quase lógica: se as floristas fazem arranjos de flores, o trabalho dos arquitectos paisagistas, que são da família das floristas, é… arranjos exteriores. Sim, porque o espaço fica sem daninhas, fica limpo, liso, fica… fica arranjado.

Oh arquitecto, veja lá se este descampado não está mesmo a pedir uns 'arranjos exteriores'? Não seria bom chamarmos uns paisagistas?

Oh arquitecto, veja lá se este descampado não está mesmo a pedir uns ‘arranjos exteriores’? Não seria bom chamar uns paisagistas?

Chama-se Luís Rebelo de Andrade, é arquitecto e teve a honra de (juntamente com Tiago Rebelo de Andrade e Manuel Cachão Tojal) projectar, quase 20 anos depois dos primeiros jardins verticais de Patrick Blanc, aquilo que se pode ver em baixo. Num tom sério (imagino eu), de quem parece acreditar no que diz, o ‘criativo’ português contava recentemente ao jornalista que iria gabar mediaticamente a sua obra (vai na volta e o ‘criativo’ estava mas era a gozar com o jornalista – afinal quem será aqui o otário?): “tínhamos de marcar a nossa passagem por este mundo. Não podíamos fazer um revivalismo qualquer, mas alguma coisa inovadora, que se destaque do que há no mercado.”

Revival: jardim vertical em edifício na Lapa, Lisboa, 2012

Aberração é um decalque do francês aberration, que por sua vez deriva do verbo latino aberrare que, no meu dicionário de Latim, significa “andar longe de, afastar-se, desviar-se do caminho, extraviar-se”.

Se esta leitura for correcta, uma intervenção aberrante na paisagem não é em si mesma . Ela apenas anda longe daquilo que é usual fazer-se, anda pois extraviada, afastada das normas, do senso comum. Peço por isso aos meus prezados leitores abertura de espírito para avaliar cada uma das aberrações que por aqui irei trazendo.

Aspecto da escada na entrada poente do Parque Verde do Mondego, Coimbra, Fernando Guerra

Começo com um caso aparentemente irrelevante mas que considero fascinante. Na verdade, toda a obra, da qual o caso que elegi é apenas uma pequena parcela, é aberrante o suficiente para poder receber esta minha homenagem. Mas a escadaria colossal, superiormente retratada na fotografia, merece um louvor especial; é sem dúvida a cereja em cima do bolo de toda uma obra milionária, que ainda devemos andar a pagar, juntamente com tantas outras, aos nossos amigos credores alemães.

Acontece que nasci em Coimbra. O que equivale a dizer que conheço aquela zona. Como era e como ficou, depois da intervenção. E, talvez por isso, ou apenas por não apreciar a brutalidade na arquitectura, não consigo perceber o porquê daquela escada – nem do resto da obra, é certo. O que até certo ponto me fascina. Será certamente daí o facto de a considerar uma aberração: pelo nonsense absoluto que é capaz de despertar.

O seu fascínio não é portanto estético. Definitivamente.

Aspecto da mesma escada, Coimbra, Fernando Guerra

O seu fascínio provém, julgo eu, da forma monumental, altiva, exageradamente desequilibrada, forçada, ou mesmo chocante e brutal como estabelece a comunicação entre o relvado e a passerelle branca, neutra, logo contemporânea, que procura aparecer leve e pura, mas cuja brutalidade e absoluta ausência de sensualidade (assim como a incapacidade de lidar com a transcendência, com a magia, com a história desse ‘novo’ lugar de memória que é o Mosteiro de Sta. Clara-a-Velha dado a conhecer pelas escavações arqueológicas) são igualmente notórias.

Aspecto da passerelle do mesmo Parque, Coimbra, Fernando Guerra

Qualquer escada sugere em quem a observa movimento, anunciando o trânsito de corpos movendo-se entre espaços contíguos.

Menos esta que, por ser tão neutra e asséptica, e fundamentalmente tão desnecessariamente colossal (o que se percebe muitíssimo melhor no local do que através das fotos), é incapaz de remeter para a ideia de corpos (humanos), de calor (biológico), de movimento (de qualquer tipo). Apetece apenas fugir dela – tal como da passerelle, aliás, que remete mais para a imagem de uma auto-estrada sem pausas nem fim, do que de um caminho pedonal com motivos (sensoriais, simbólicos, intelectuais) para estimular-nos ou chamar-nos ao passeio, à deambulação (que é, afinal de contas, uma característica central do jardim português – sim, estamos nessa coisa pouco civilizada que dá pelo nome Portugal – e que os criadores portugueses de paisagens contemporâneas tão pouco ou nada consideram, tratando-nos como finlandeses, belgas, holandeses, ou qualquer outro povo civilizado).

Outro aspecto da passerelle, Coimbra, Fernando Guerra

 

Banco algures à volta da muralha, Évora, 2011, Andrea Morgenstern

Serve para motivar-nos a caminhar e a não ficarmos sentados à espera de que alguma coisa aconteça.

Eu num banco à volta da muralha, Évora, 2011, Andrea Morgenstern

Serve para incorporar o inesperado, o imprevisível no nosso quotidiano.

Eu e o meu caderno num banco à volta da muralha, Évora, 2011, Andrea Morgenstern

Serve para intrometer-se nos nossos longos monólogos, que registamos em caderninhos, enquanto tomamos distância e perspectiva sobre um tema da nossa vida privada ou pública.

Eu e o meu caderno outra vez, Évora, 2011, Andrea Morgenstern

Serve para esconder de nós próprios a merda que escrevemos.