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Apesar da crise (de chuva, claro), já começou a temporada de cogumelos!

Mas cuidado: como a temperatura anda quente (acho eu que é por isso), as letais amanitas estão a rebentar por toda a parte. O que, para qualquer mediano conhecedor da matéria, nem é assim tão mau: as comestíveis e deliciosas amanita caesarea, pelas quais por exemplo os catalães pagam fortunas inacreditáveis e que se distinguem muito facilmente de todas as outras irmãs amanitas (por terem lâminas amarelas e estrias inconfundíveis em toda a borda do chapéu) estão a aparecer bastante, elas que o ano passado não deram nenhum sinal de vida aqui nos montes da aldeia onde vivo.

Refogado com amanitas caesarae, alho e malagueta, Alentejo, 2011, Pedro Duarte

Já fiz umas belas refeições com elas, refogadas apenas com alho esmagado, uma malagueta poderosa e flor de sal.

Malaguetas da horta da vizinha, Alentejo, 2011, Pedro Duarte

A malagueta é efectivamente imprescindível no petisco.

Magnífico relvado, Qta. da Bacalhoa, Azeitão, 2011, Pedro Duarte

O facto de não ser tema que os escribas do espectáculo, vulgarmente designados por jornalistas, tenham decidido converter em matéria mediática apenas vem confirmar e reforçar a sua importância, a urgência de se reflectir sobre os seus efeitos e as suas motivações: os outrora fascinantes jardins da Quinta da Bacalhoa, adquiridos há uma década pelo bilionário Joe Berardo foram desfigurados, pervertidos, adulterados. Numa palavra, falsificados.

Nada de estranho, portanto. Numa época onde, da cerveja ao bife (como diria Debord), passando pelos pastéis de bacalhau, o pão, as bolas de berlim, os vinhos, as alfaces, mas também pelos filósofos, artistas  e lugares, tudo se falsifica, porque não também os jardins e as chamadas paisagens culturais? [Enfim, porque não torná-los reconhecíveis e aceitáveis ao (mau) gosto contemporâneo?]

Aspecto geral da vinha que veio substituir o pomar de citrinos, Qta. da Bacalhoa, Azeitão, 2011, Pedro Duarte

A Qta. da Bacalhoa exemplifica na perfeição o espírito falsificador que sobrevoa e domina a nossa época, pervagando-a de lés a lés. É sabido que, ao contrário da velha aristocracia, o novo-riquismo não sabe reconhecer ao tacto, ao paladar, à vista ou ao cheiro uma qualquer transcendência na matéria que nos rodeia (e que, por lhe atribuirmos um valor e um significado singulares, vamos convertendo em cultura), seja a beleza perfumada de uma flor, o sabor intenso de um tomate verdadeiro, a voz divina de Cecilia Bartoli ou o fascínio de uma madeira antiga. O novo-riquismo prefere trocar estas sensações por experiências hedonistas em spas, em geladarias Haagen Dazs ou nos areais das Maldivas.

Vistas sobre a quinta, Qta. da Bacalhoa, Azeitão, 2011, Pedro Duarte

Mas o que veio afinal de contas falsificar a intervenção nos jardins da Bacalhoa ordenada pelo comendador coleccionador?

Datada essencialmente do período renascentista, e inspirada no grande movimento cultural italiano, a arquitectura dos jardins desta quinta única conferiu-lhes um ambiente que não deixa de ser muito próprio dos jardins portugueses. São disso bem demonstrativos o seu carácter de intimidade; a relativa quebra na rigidez geométrica e na unidade de composição entre jardins e casa (ou seja, a quase ausência dos desenvolvimentos axiais típicos do renascimento italiano ou do barroco francês); o estímulo constante à deambulação, mas também à pausa e à fruição sensorial; a relativa compartimentação do espaço ajardinado; a dispersão de bancos ao longo de caminhos; a frescura aquática do grande tanque associada à sombra da casa de fresco que lhe está contígua; a presença geométrica e colorida de azulejos; o perfume (da flor), a cor (da fruta) e a constância (da folha) do pomar de citrinos; os poderosos contrastes luz/sombra. Estes e outros aspectos concorrem para que os jardins da Bacalhoa, pela sua antiguidade, se possam considerar de certa forma fundacionais na constituição daquilo que alguns chamaram o jardim português.

Tanque e casa de fresco, Qta. da Bacalhoa, Azeitão, 2011, Pedro Duarte

Ora, foi precisamente este interesse para a história da cultura, da paisagem e da identidade portuguesas que as várias intervenções, imagino que sem o consentimento das autoridades públicas tutelares, vieram afectar, ao transformarem a topografia, ao trocarem o antigo laranjal por uma vinha, ao colocarem um tapete de relva, ao construírem novas vedações, ao afectarem o antigo sistema de rega por gravidade de tradição islâmica…

Aspecto do relvado, Qta. da Bacalhoa, Azeitão, 2011, Pedro Duarte

A Qta. da Bacalhoa converteu-se assim no Château do Joe. Um château vinícola à la Bordeaux, mas onde não falta um relvado muito british. Fica a pergunta no ar: para quando a plantação de uma alameda de palmeiras tunisinas?

Enfim, a chegada triunfal a Azeitão (e não só) do sr. Berardo veio revelar em que delicadas mãos estão guardados alguns dos tesouros culturais e artísticos deste e doutros países. Fica uma certeza: a concentração do capital numas quantas mãos é terrível; a da cultura também.

Qualquer comentador político minimamente credível e responsável, daqueles que costumam aparecer na tv em horário nobre com a camisa muito bem passada a ferro (terão sido as suas mãos a passá-la a ferro?), sabe perfeitamente que não existem ‘classes’, que eventualmente nunca existiram; e que entre os diferentes estratos da sociedade não existem conflitos, atritos nem tensões: a paz e a harmonia reinam entre todos nós – mesmo que estejamos na sociedade da Europa ocidental onde a distribuição de rendimentos é mais desigual.

Os recentes motins atenienses, parisienses e londrinos são reveladores de que o neo-liberalismo reinante é portador de harmonia social. E de que as ‘classes’, obviamente, não existem. Aliás, já nem os intelectuais se lembram de falar nelas. Estão definitivamente ‘fora de moda’.

No entanto, e apesar de todas estas evidências, ainda existem mulheres que, habitando aldeias pobres ou bairros periféricos, se deslocam diariamente dezenas de quilómetros para ir limpar as retretes de quem nunca soube o que é limpar a urina (e não só) do interior do rebordo de uma retrete. “Mas o que terá isto a ver com classes?”, questionará o leitor que se sente pobre e maltratado pela sociedade, mas que jamais encostou o nariz ao interior da retrete de lá de casa; porque nunca teve de limpá-la: existe sempre alguém abaixo de si na hierarquia que irá executar tão repugnante tarefa.

Poderíamos assim dividir toda a sociedade (lusitana) em pelo menos duas classes principais: (a) aqueles que não precisam de limpar a retrete onde mijam e cagam diariamente e (b) aqueles que, além de terem de enfiar a mão e o nariz na sua, enfiam-nos também na retrete onde mija e caga o patrão; enfim, aqueles que se podem subtrair ao universo de tarefas repugnantes e aqueles que ficariam totalmente de fora do sistema económico não fora o facto de estarem disponíveis para realizar precisamente essas tarefas. E eis que chegamos à notícia do título deste texto. Por intermédio de umas considerações (repugnantes e) muito breves sobre essa coisa que deixou de existir (nos média) mas que afinal está por toda a parte (na realidade) chamada… ‘classes sociais’.

Em Lagos existe um bairro habitado há várias décadas por centenas de pessoas que é comprometedor para os negócios da classe dominante. Este bairro exemplifica perfeitamente como o território português está hoje no centro de uma luta entre classes com interesses antagónicos. De um lado, estão os que, apoiados pelos poderes políticos, manipulam o território para especular e ‘fazer negócios’; olham para o território em busca de metros quadrados  especuláveis. Do outro, estão os que, ignorados pelos poderes políticos, usam o território para satisfazer as necessidades do quotidiano.

O bairro da Meia Praia é apenas um caso de estudo entre tantos outros que também poderiam ilustrar esta luta de classes. Aqui, as classes dominantes encontraram o seu porta-voz no presidente da Câmara de Lagos, um personagem muito típico de um mundo reaganiano (que infelizmente é o nosso) e que dá pelo nome Júlio José Monteiro Barroso. O bairro que o sr. Barroso se propõe erradicar, sendo habitado maioritariamente por pescadores, não é compatível com os luxuosos hotéis previstos para a zona. Em palavras do sr. Barroso, “A Meia Praia está consagrada no novo plano de urbanização como zona turística de excelência”. Assim sendo, os pescadores terão de encontrar uma nova zona para se estabelecerem, desde que não seja “de excelência”, caso contrário lá voltarão a ter de ser realojados.

A excelência, como deixa entender o sr. Barroso, não é para todos. Não o é certamente para os pescadores, que não merecem viver num lugar bonito, aprazível, com boas vistas. NÃO! Isso não é coisa de pescadores. JAMAIS! Seria uma afronta à malta dos Audi, das piscinas, dos golfs, dos spas, das Pousadas.

E agora o leitor que me diga se há ou não há ‘classes’ neste mundo de merda!

Aconteceu numa montanha indiana.

Conheça a história, com mais detalhe:

 

… só está a começar. Mas os média já se calaram. Obtenha informações detalhadas sobre o estado actual da catástrofe aqui.

A estação de metro Baixa-Chiado foi rebaptizada PT Bluestation. Segundo o presidente do Metropolitano esta mudança “é um marco na vida do metro, um marco de ruptura, de inovação, de criatividade”. Com tantas almas em busca de ruptura, inovação e criatividade (e com o neo-liberalismo selvagem a devorar agora também os até aqui tranquilos topónimos), ainda ninguém se lembrou de mudar o nome de Lisboa para ‘Coca Cola Paradise’ ou de Coimbra para ‘Pfizer & L’Oréal Consortium’?

O secretário de Estado dos Transportes, outro visionário neo-liberal, também se declarou “muito contente com este projecto” pois “corresponde à vontade do Governo de que as empresas públicas de transportes encontrem formas inovadoras e criativas de gerar receitas”. (Porque não sacar também um órgão, para colocá-lo à venda na internet, a cada passageiro apanhado sem bilhete?)

Longe vai o tempo em que se convidavam artistas, com uma visão mais ou menos crítica do presente, para embelezarem as estações.

Longe vai o tempo em que a crítica era admitida no espaço público.

(Quem já leu os lúcidos Comentários à Sociedade do Espectáculo de Guy Debord sabe que o momento histórico em que vivemos tem um nome: espectacular integrado. A decisão recente do metropolitano de Lisboa vem apenas confirmá-lo.)

Mas a resposta que recebi, por carta registada, elaborada pela Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Energético do Ministério de Minas e Energia do Basil foi paupérrima. Demasiado má; pobre; vazia; incompetente. Nem uma palavra para as populações indígenas que dependem do rio. Nem uma palavra para a biodiversidade. Nem uma palavra para o futuro da Amazónia.

Conheço uma pequena parte da Amazónia. Viajei numa canoinha rudimentar pelo rio Negro (acampando no meio da selva), entre Manaus e Barcelos, e por outros rios (Madeira e Amazonas) por meios menos rudimentares. E posso bem imaginar o inacreditável impacto das mega barragens planeadas ou em construção em toda a bacia do Amazonas e afluentes. Consequências para todo o ecossistema e para as populações indígenas, tão profundamente ligadas aos rios e tão dependentes dos seus caudais.

O governo brasileiro está comprometido com o crescimento económico do país. Sacrificar a Amazónia ao crescimento da economia é uma inevitabilidade, fiquei definitivamente a sabê-lo, através da resposta que recebi:

que se fodam os índios, que se foda a biodiversidade, que se foda o ecossistema, que se foda o amanhã.

Foto oficial do Ministério de Minas e Energia, Brasília, 2009

Alternativas às políticas depredadoras?

Um bando de franceses invulgarmente sensatos anda a pensar nisso há uns tempos. Chamam-lhe décroissance, o que em português significa decrescimento.

A verdade é que não vejo outro caminho.

‘Lixo’ é um conceito recente.

Os meus vizinhos nonagenários contam-me que, ainda há poucas décadas, não acumulavam grandes restos das coisas consumidas. O que sobrava, geralmente matéria orgânica, voltava para a terra, de onde aliás tinha vindo.

Também no porto de Manaus, capital do estado brasileiro da Amazónia, onde vivem muitas pessoas dentro de barquinhos rudimentares (onde chegam a ter galinhas e a fazer hortas), o que sobra vai parar ao Amazonas. Os restos jamais se acumulam, nunca chegando pois a formar uma ‘lixeira’. Há dez anos, os meus olhos pasmados viram restos de comida, de cerâmica e de roupa a voar com uma grande naturalidade para o rio.

‘Lixo’ não é pois um conceito operativo para descrevermos todas as épocas nem todas as culturas. Mas é um conceito central para descrevermos o mundo em que vivemos e o modelo de sociedade e de economia dominantes.

Produzir lixo é hoje, nos meios mais prósperos do Ocidente, um sinal distintivo que assinala o prestígio, a dignidade, o privilégio de um indivíduo, o seu grau de sucesso na hierarquia social. Quantas toneladas de lixo produzirá anualmente o Cristiano Ronaldo? Em quantos quilos de plástico virá embalada a comida que ele semanalmente consome? E a roupa? Quantos quilómetros quadrados de tecido passado de moda deitará esse escravo do espectáculo fora num único ano? Lixo é aqui sinónimo de luxo.

Não menos interessante do que o lixo luxuoso de CR7 para conhecermos o tempo em que vivemos, seus hábitos e suas práticas, é o lixo que uma equipa da Universidade de Washington tem andado a estudar: aquele encontrado na fronteira mexicana com os EUA, gerado por milhões de ‘latinos’ em busca do sonho americano.

Bota encontrada na fronteira mexicana com os EUA, 2011, Jeff Corwin

Chamado Undocumented Migration Project, este projecto de investigação etnográfica converte mochilas, calçado, garrafas de água e muitos outros itens de cultura material abandonados na paisagem em documentos para revelar algo da biografia e da identidade dos corpos anónimos que cruzam a fronteira. O lixo, acumulado no território percorrido por milhões de ‘migrantes’, pode ser alvo de uma série de questionários que o convertem num precioso recurso para recuperarmos informações sobre vidas submetidas a torturas várias que todos os média, reféns do espectáculo, propositadamente ignoram.

A história do nosso tempo poderia hoje definir-se como “tudo aquilo que ocorre fora dos média”; e o Undocumented Migration Project é precisamente um projecto sobre história do nosso tempo.