Archives for category: Jardins

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… os jardins espontâneos.

Fotos de A. Morgenstern, Berlim

O que faz um moderno relvado na antiga Bacalhoa? Perguntem a Vera Nobre da Costa que ela tem a resposta, Quinta da Bacalhoa, Azeitão, 2011, Pedro Duarte

A propósito dos jardins da Quinta da Bacalhoa, recentemente recuperados/falsificados – como foi já tema deste blog e voltará de certo a sê-lo– pelo investidor-comendador-coleccionador Berardo,  a colaboradora da revista Jardins, observa na sua execrável e abominosa  coluna (chamada ‘histórias do meu jardim’), onde nunca faltam trivialidades e enfastiosos lugares comuns capazes de desesperar qualquer leitor com o Q.I. pelo menos igual ao dos macacos antropóides da Indonésia, que “a Quinta passou de um estado de semirruína a uma conservação absolutamente impecável.” Leio lentamente e não acredito; mas é o que está lá escrito: “con-ser-va-ção a-bso-lu-ta-men-te im-pe-cá-vel.” Tarouquice, demência ou indigência intelectual? O comendador, esse, agradece. Aliás, muito provavelmente, foi ele quem pagou a almoçarada à senhora no dia da visita à quinta: “O meu passeio terminou num almoço, organizado na loggia”, como relata a nossa dama.

É digno de registo que Luís Melo, director da respeitável publicação mencionada (que conta com uma tiragem mensal de nada menos do que 15.000 exemplares!), aceitou que fosse publicado um texto que não faz nada mais nada menos do que a apologia da eliminação/falsificação do património histórico – repito, HISTÓRICO: porque a intervenção que foi feita nos jardins da Bacalhoa não foi uma mera intervenção na paisagem, ela foi também uma intervenção na nossa memória (logo, também na nossa identidade), ao deturpar conteúdos do nosso passado.

E, já agora, para que serve um ilustre e extenso conselho editorial (composto, entre outros, por paisagistas de renome como João Nunes, Cristina Castel Branco, Catarina Assis Pacheco, Teresa Andresen ou Francisco Caldeira Cabral) se, afinal de contas, o que por vezes se publica na revista apenas iguala, sem superar, o nível do que se publica numa Caras ou numa Maria? (A propósito, será que a Caras e a Maria também possuem um ‘conselho editorial’?)

[ADENDA: Acabo de descobrir que Vera Nobre da Costa faz parte dos órgãos sociais da Associação Portuguesa de Jardins e Sítios Históricos e, de repente, fico com medo de viver num país esquizofrénico onde é possível simultaneamente (a) louvar publicamente a destruição/falsificação do património histórico e (b) integrar uma associação que zela pela sua conservação.]

Eis uma questão que (me) adoro colocar. E faço-o frequentemente – as questões mais infantis são para mim as mais interessantes; são também aquelas para as quais mais dificilmente encontro respostas convincentes.

Em Portugal, o jardim está em vias de extinção. Já pouca gente (e nenhum arquitecto contemporâneo… ah, como eu te adoro) sabe apreciar o potencial de um jardim. Ou sequer reconhecê-lo: entender que num jardim existe um potencial, uma potência, que pode ser transformada, convertida em qualquer coisa; será um poder fazer? um poder sentir? um poder evocar? um poder SER?

A essência do jardim é antes de mais ficcional. Qualquer jardim, e não apenas o jardim japonês, é por natureza uma ficção, uma simulação, uma ilusão. Um bom paisagista é por isso sempre um ilusionista cujos ilusionismos, quer dizer, cujos jardins, deverão ser suficientemente convincentes para fazer-nos crer, inconscientemente (mas atenção porque as coisas mais importantes e eficazes que ocorrem no nosso cérebro ocorrem sem que delas tenhamos consciência), estarmos perante o azul fresco do mar, do lago ou do rio, o turbilhão de fantasias que qualquer floresta suscita, a sensualidade quase erótica das dunas varridas pelo vento, a amplitude ao mesmo tempo serena e inquietante da planície, o sopro melodioso, tantas vezes orquestral do vento…

O que quer dizer que um jardim é essencialmente um símbolo (tal como o é igualmente a arte, segundo a interessante teoria de Nelson Goodman). Ou seja, ele anuncia sempre qualquer coisa que não está totalmente presente (poderá por vezes estar apenas em parte), evoca uma ausência, mesmo que raramente, ou mesmo nunca, sejamos disso conscientes (não me canso deste ponto: a importância do nosso inconsciente na forma como apreendemos todo o meio em redor).

Mas o que evoca afinal o jardim?

Na minha opinião, o jardim evoca muito simplesmente a VIDA. Evoca a terra, a água, a pedra, a madeira, a vegetação, o céu, o vento, o fogo (através do Sol), o calor, o frio, o seco, o molhado, a luz, a sombra, a cor, etc., etc., ou seja, todos os elementos vitais; a vida.

O jardim é o palco e o cenário onde, no plano da cultura, se representa e sintetiza a história da vida. O que o jardim simula culturalmente é a paisagem e a passagem da vida.

E daí estar em vias de extinção. No nosso tempo, a esfera da vida é cada vez mais monopólio dos industriais e das suas mercadorias. Já repararam que toda a propaganda actual ao consumo se concentra sobre o viver? A mensagem das principais agências de publicidade resume o feitiço das mercadorias à sua capacidade para dar-nos, para lá do poder, a vida.

Fora do reino da mercadoria, o comum dos mortais sente hoje uma certa relutância em reconhecer a esfera da vida, em identificá-la. E é justamente por isso que deixou de saber interpretar ou apreciar algo tão elementar e simples como um jardim.

Os jardins antigos estão hoje, em Portugal, abandonados (e são por isso tão belos: ruínas em construção). Ou então recuperados (falsificados) para agradar ao olho, mas não aos restantes sentidos, de uma burguesia que sabe entregar-se de corpo e alma aos disfarces e às aparências, mas não àquilo que contém no seu interior uma violência primordial: a violência da vida.

Magnífico relvado, Qta. da Bacalhoa, Azeitão, 2011, Pedro Duarte

O facto de não ser tema que os escribas do espectáculo, vulgarmente designados por jornalistas, tenham decidido converter em matéria mediática apenas vem confirmar e reforçar a sua importância, a urgência de se reflectir sobre os seus efeitos e as suas motivações: os outrora fascinantes jardins da Quinta da Bacalhoa, adquiridos há uma década pelo bilionário Joe Berardo foram desfigurados, pervertidos, adulterados. Numa palavra, falsificados.

Nada de estranho, portanto. Numa época onde, da cerveja ao bife (como diria Debord), passando pelos pastéis de bacalhau, o pão, as bolas de berlim, os vinhos, as alfaces, mas também pelos filósofos, artistas  e lugares, tudo se falsifica, porque não também os jardins e as chamadas paisagens culturais? [Enfim, porque não torná-los reconhecíveis e aceitáveis ao (mau) gosto contemporâneo?]

Aspecto geral da vinha que veio substituir o pomar de citrinos, Qta. da Bacalhoa, Azeitão, 2011, Pedro Duarte

A Qta. da Bacalhoa exemplifica na perfeição o espírito falsificador que sobrevoa e domina a nossa época, pervagando-a de lés a lés. É sabido que, ao contrário da velha aristocracia, o novo-riquismo não sabe reconhecer ao tacto, ao paladar, à vista ou ao cheiro uma qualquer transcendência na matéria que nos rodeia (e que, por lhe atribuirmos um valor e um significado singulares, vamos convertendo em cultura), seja a beleza perfumada de uma flor, o sabor intenso de um tomate verdadeiro, a voz divina de Cecilia Bartoli ou o fascínio de uma madeira antiga. O novo-riquismo prefere trocar estas sensações por experiências hedonistas em spas, em geladarias Haagen Dazs ou nos areais das Maldivas.

Vistas sobre a quinta, Qta. da Bacalhoa, Azeitão, 2011, Pedro Duarte

Mas o que veio afinal de contas falsificar a intervenção nos jardins da Bacalhoa ordenada pelo comendador coleccionador?

Datada essencialmente do período renascentista, e inspirada no grande movimento cultural italiano, a arquitectura dos jardins desta quinta única conferiu-lhes um ambiente que não deixa de ser muito próprio dos jardins portugueses. São disso bem demonstrativos o seu carácter de intimidade; a relativa quebra na rigidez geométrica e na unidade de composição entre jardins e casa (ou seja, a quase ausência dos desenvolvimentos axiais típicos do renascimento italiano ou do barroco francês); o estímulo constante à deambulação, mas também à pausa e à fruição sensorial; a relativa compartimentação do espaço ajardinado; a dispersão de bancos ao longo de caminhos; a frescura aquática do grande tanque associada à sombra da casa de fresco que lhe está contígua; a presença geométrica e colorida de azulejos; o perfume (da flor), a cor (da fruta) e a constância (da folha) do pomar de citrinos; os poderosos contrastes luz/sombra. Estes e outros aspectos concorrem para que os jardins da Bacalhoa, pela sua antiguidade, se possam considerar de certa forma fundacionais na constituição daquilo que alguns chamaram o jardim português.

Tanque e casa de fresco, Qta. da Bacalhoa, Azeitão, 2011, Pedro Duarte

Ora, foi precisamente este interesse para a história da cultura, da paisagem e da identidade portuguesas que as várias intervenções, imagino que sem o consentimento das autoridades públicas tutelares, vieram afectar, ao transformarem a topografia, ao trocarem o antigo laranjal por uma vinha, ao colocarem um tapete de relva, ao construírem novas vedações, ao afectarem o antigo sistema de rega por gravidade de tradição islâmica…

Aspecto do relvado, Qta. da Bacalhoa, Azeitão, 2011, Pedro Duarte

A Qta. da Bacalhoa converteu-se assim no Château do Joe. Um château vinícola à la Bordeaux, mas onde não falta um relvado muito british. Fica a pergunta no ar: para quando a plantação de uma alameda de palmeiras tunisinas?

Enfim, a chegada triunfal a Azeitão (e não só) do sr. Berardo veio revelar em que delicadas mãos estão guardados alguns dos tesouros culturais e artísticos deste e doutros países. Fica uma certeza: a concentração do capital numas quantas mãos é terrível; a da cultura também.